Enquanto
eu sentava para escrever esta reportagem em minha timeline pulava uma
notícia, um Senegalês teve o corpo incendiado e seus pertences
roubados na cidade de Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul. Uma
barbárie causada por racismo e xenofobia, que foi perceptível assim
que houve uma entrada mais expressiva de refugiados em regiões, como
a Serra Gaúcha. Meu estado que foi formado por imigrantes europeus,
não só acha que africanos e haitianos não tem o mesmo direito de
imigrar como seus antepassados tiveram. Como acham que estes “novos”
imigrantes não têm direito a vida.
Imediatamente
me recordei de todas as cenas que venho acompanhando ao longo destes
meses de produção desta reportagem de intolerância contra aqueles
que caminham em busca de uma vida com dignidade. Vimos policiais na
Hungria jogar comida para alto, como uma espécie de sorteio, para
que os imigrantes comam como animais; a jornalista húngara que
colocou o pé para que um pai com a criança no colo caísse e fosse
capturado; famílias Sírias se jogando nos trilhos do trem para não
serem presas; governos impedindo o acesso ao transporte coletivo a
imigrantes; entre tantas outras cenas tristes.
Resgate do menino Aylan Kurdi por policiais turcos. Agência AP DH |
A
cena que virou símbolo de toda essa luta foi do menino sírio Aylan
Kurdi. Com apenas três anos cruzou o mar com a sua família em um
bote, assim como milhares de refugiados todos os dias, na península
de Bodrum no sudeste da Turquia. Infelizmente Aylan, sua mãe e seu
irmão não chegaram ao destino, pois morreram afogados. A foto do
corpinho frágil de Aylan esticado na costa da península voou o
mundo, nela um policial tomava nota em seu bloquinho antes de
recolher o corpo. Uma cena de frieza, de translucidez do tamanho
genocídio causado pelas portas da Europa se encontrarem fechadas.
Antes do resgate policiais tomam nota. Cena de frieza. Agência AP DH |
A
crise causada pelo intenso fluxo migratório no mundo trouxe ao
século XXI um retrato de sua desumanidade.
O
Haiti é aqui
Um
povo acostumado a lutar pela sua liberdade, pelo direito a sua terra
e por paz. Assim tem sido a saga do povo haitiano desde a proclamação
de sua república no início do século XIX. O líder Jean Jacques Desselines declarou a independência do Haiti e se autodeclarou imperador, em
retaliação recebeu de europeus e estadunidenses 60 anos de embargo
econômico. Contando durante esse período com a ajuda para resistir
do libertador Simon Bolivar, que tinha entre os seus compromissos, ao
libertar as Colônias Européias na América, alforriar os escravos
negros.
O
Haiti atravessou o século XX com sua soberania nacional ameaçada,
com forte interferência dos Estados Unidos. Tendo como seu maior
aliado o ditador François Duvalier, mais conhecido como Papa Doc que
governou o país de 1957 até sua morte em 1971. Quando deixou seu
filho, Baby Doc que conseguiu manter o sistema feroz até 1987.
Imperador Jean Jacques Desselines em 1804. |
As
Nações Unidas mantiveram durante os anos 1990 e início de 2000
muitas tentativas de “recuperar” a democracia no país, sempre
com empenho central dos Estados Unidos. Em 2004 o Conselho de
Segurança da ONU compreendeu que era necessário uma Força de Paz
para auxiliar na estabilização do país.
Mas
em 2010 um terremoto catastrófico atingiu o país, 85% das
edificações em Porto Príncipe, capital do Haiti, foram destruídas
ou duramente danificadas. Naquele ano o primeiro-ministro, Jean-Max
Bellerive, estimou que tenham sido mais de 300 mil mortes e 400 mil
pessoas desabrigadas.
É
neste cenário que o povo Haitiano parte de sua terra. No Brasil os
haitianos já chegam a ser mais de 39 mil abrigados, porém não são
considerados refugiados.
Segundo a lei brasileira, o refúgio só pode ser concedido a quem
provar sofrer perseguição em seu país, por motivos étnicos,
religiosos ou políticos. Porém, em razão da crise humanitária
provocada pela catástrofe de 2010, o governo brasileiro abriu uma
exceção, concedendo-lhes um visto diferenciado.
A
esperança que vem do outro lado do Oceano
Os
senegaleses vivenciam uma nova diáspora. A disputa dos países
europeus pela colonização africana deixou uma herança de miséria,
mortes, dissolução de tribos e destruição de países. O Senegal
foi colonizado no século XIX pela França. Hoje a maioria esmagadora
da população é formada por jovens, pois os adultos morreram na
guerra. O mercado de trabalho tem pouca capacidade de absorção da
mão de obra pela economia ser muito fraca.
Neste
contexto a opção por migrar é uma opção de sobreviver.
Os
senegaleses falam pouco de como foi seu percurso para chegar até o
Brasil. Supõe que um dos roteiros principais inicia-se pelo Equador,
pois o país não cobra visto para circulação. Outros optam por
cruzar via Acre. Deixando sem dúvida bons valores com
atravessadores.
Manifestação de Senegaleses no Centro de Porto Alegre/RS. |
Sírios:
maior nação de refugiados pelo Mundo
Segundo
a ONU já chega a 4 milhões de refugiados Sírios pelo mundo. Hoje
são a maior população deslocada de seu país.
Uma
das rotas de fuga tem como seu ponto de partida a Turquia, por uma
questão geográfica, de lá partem de forma ousada rumo a Europa. A
adjetivação de ousadia é em decorrência de cruzarem em botes
plásticos que partem diariamente a península de Brodrum, na
Turquia, para ilha de Kos, na Grécia. Botes inseguros e superlotados
de pessoas e esperança. Uma viagem de alto risco, já que o Mar Egeu
afoga diariamente muitos sonhos em suas águas turvas. Assim como a
história do menino Aylan Kurdi e sua família.
Segundo
Mauren Montovani, da Frente de Solidariedade ao Povo Palestino, os
palestinos que eram anteriormente a maior população refugiada do
mundo também compõem os números Sírios. Já que muitos palestinos
migraram para Síria e hoje são obrigados a migrar novamente.
Um
dos conflitos mais
sangrentos têm
como seu protagonista o Estado Islâmico, um dos mais violentos
grupos terroristas na atualidade. Surgido em 2013, hoje o Estado
Islâmico tem atuação independente. Sua intenção é impor pela
força o domínio sobre o território iraquiano e sírio.
Partidas
de muitos territórios, identidades e culturas. Unidos em um só
grito, o grito de esperança!
Ao
contar um pouco da história destes países é possível perceber que
apesar de histórias, trajetórias, e conflitos diferentes a
motivação para migrar é a mesma. Buscar uma vida melhor, com paz e
dignidade para sí e seus familiares.
No
Brasil são 81 nacionalidades de refugiados, um quarto é formado por
mulheres. Os sírios são o maior grupo entre os reconhecidos pela
legislação brasileira como refugiados, representam 23% do montante
que já ultrapassa 8.500 pessoas. Os dados são do Comitê Nacional
para Refugiados (Conare) do Ministério da Justiça.
O
desafio de recomeçar, recomeçar sobre nova pátria, em outra
cultura, se desafiando cotidianamente
Ao
ouvir as histórias destes desbravadores do mundo achei que fosse
ouvir muitas histórias tristes. Para mim, o sentimento de abandonar
sua pátria, deixando sonhos, familiares e amigos, bens, entre tantas
outras coisas, só poderia ser preenchido com forte frustração.
Porém
o que ouvi foi muito diferente, vi a felicidade de poder recomeçar,
vi a esperança de possibilitar a suas famílias uma vida melhor,
enxerguei muita disposição de enfrentar qualquer desafio para
seguir em frente.
Entre
as histórias que mais me tocaram foi ao visitar um grupo de
haitianos abrigados no Centro Vida, zona norte de Porto Alegre.
Dormem em um ginásio, com pouca infraestrutura e trabalham em
subempregos ligados a reciclagem e limpeza.
Grupo de Haitianos moradores do Centro Vida, zona norte da capital. Foto: Laura Sito |
Alguns
tinham migrado para outros países da América do Sul antes de chegar
ao Brasil. Trabalhando em muitas funções, desde a construção
civil até na prestação de serviços, pois qualquer trabalho era
meio de transporte para levar ao sonho de poder se fixar em lugar
seguro para recomeçar.
O
jornalista Balan O. Junior foi quem mais me chamou a atenção. O
haitiano trabalhava em uma emissora de televisão local. Era o único
entre o grupo de haitianos que visitei que tinha uma profissão e
curso superior. O trabalho que encontrou em Porto Alegre era empresa
de serviços gerais, mas se você acha que o encontramos triste está
enganado. Para ele aquela é uma condição temporária até
conseguir o visto permanente para poder trabalhar em algo melhor e
juntar dinheiro para trazer sua família.
O
Caminho para a Europa, um acerto de contas histórico
A
rota preferencial dos imigrantes tem como ponto de chegada a Europa.
A Alemanha tem consigo 40% dos pedidos de asilo. Mesmo com muitos
países precisando de mão de obra em áreas onde a população do
país não tem interesse em trabalhar, a tensão é grande para o
acolhimento dos refugiados.
Se
estes países não tivessem ajudado a invadir e destruir países como
o Iraque, Líbia, e a Síria; armando através de suas agências de
espionagem terroristas que deram origem a grupos como Estado
Islâmico, a fim de combater Kadafi e Bashar Al Assad, fomentado o
engano da Primavera Árabe, a Europa não seria protagonista da maior
crise humanitária deste século.
Os
Estados Unidos, maior responsável neste período histórico pela
existência de refugiados, afirmam preferir enviar dinheiro a acolher
os grupos por medo de que tenham “terroristas” infiltrados.
Refugiados estes que são resultado da “guerra ao terror”
fomentada pelo país após o ataque as Torres Gêmeas.
A
realidade é que os povos caminham em direção a aqueles que têm
relação direta com a situação que seus países vivenciam. A
exploração das riquezas destes países ocasionou tensões, guerras,
miséria e destruição. A caminhada dos povos refugiados ao velho
mundo tem um tom de acerto de contas histórico.
*Publicação para o jornal 3x4 da FABICO/UFRGS
*Publicação para o jornal 3x4 da FABICO/UFRGS